Bons
dias!
Eu pertenço a uma
família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou
como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que
toda a história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na
segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que
tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi
que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que
meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco
pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no
intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio
(coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me
eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por
Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que
entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu
exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não
podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que
estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um
dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à
ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando
ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e
entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas
de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos
cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a
óleo.
No dia seguinte,
chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes
ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um
ordenado, um ordenado que...
— Oh! meu senhô!
fico.
— ... Um ordenado
pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste
imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais
alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué
dizê nada, não, senhô...
— Pequeno ordenado,
repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo.
Tu vales muito mais que uma galinha.
— Justamente. Pois
seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou
tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar
bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo
um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que
lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais,
quase divinos.
Tudo compreendeu o
meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro
puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do Diabo; coisas
todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até
alegre.
O meu plano está
feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi
que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da
família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve
notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples
suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens
puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas
os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o
digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de
restaurar a justiça na terra, para satisfação do Céu.
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