segunda-feira, 26 de agosto de 2013

HOMENS E FAZENDAS


HISTÓRIA DO BRASIL DE AFRANIO PEIXOTO

Primeiro Século (I)
Homens e fazendas. — Brasil, sem proveito e aproveitado. — Primeiras Navegações. — Capitanias, Governo geral. — Os Jesuítas. — O Brasil não “esquecido”.



HOMENS E FAZENDAS
É a expressão de Couto, no Soldado: “este Reyno está tão desfeito de homens e fazendas” (c. XXIV, p. 99), como se diria, em vulgar, pouca gente e tão poucos recursos... Por esse tempo era Portugal escassamente habitado. As pestes, em terra, e os desastres, no mar, foram sempre desbarato de homens. Quando as navegações começaram, o mar disputou à terra ser-lhes o túmulo: João de Barros chegou a dizer fora o “Oceano a principal sepultura dos Portugueses, depois que começaram seus descobrimentos” (Décadas, II, 1. VII, cap. I). Em casa, ficava pouca gente. Em 1527 um censo dá 280.528 fogos, o que a quatro habitantes por lar, daria, ao país, 1.122.112 almas. Se calcularmos que metade eram mulheres, (deviam ser, mas não eram: sempre sobraram em Portugal, dada a emigração: além disto, 20% daqueles lares eram de viúvas...) metade da outra metade menores até quinze anos e maiores de sessenta, ficam apenas 280 mil homens válidos. Estes ficavam presos ao reino, a maior parte agricultores, homens de jorna, marítimos, pescadores, soldados, funcionários, clero, nobreza, enfermos e inúteis ou parasitas, que sobram em todas as sociedades. Só as ordens monásticas ocupariam perto de 10.000 homens, feita a proporção de Espanha, que não era mais piedosa, de 1 homem, para cada 30, ocupado no serviço divino. Deduzido tudo, que ficaria para as Navegações? Elas obrigavam, além dos marinheiros que as faziam, às guarnições, que mantinham entrepostos e conquistas. Sá de Miranda lamentava: ...“ao cheiro desta canella, o Reyno nos despovoa” (As obras, ed. 1614, Carta II, pág. 107). Isso os que partiam: os que chegavam, se chegavam à aventura, era metade e às vezes metade da metade...

Em 1436 o Infante Dom Pedro, em sessão do Conselho, que deliberava a expedição contra Tânger, dizia: “Posto que passassees e tomassees Tanger, Alcácer, Arzila, quereria, senhor, sabeis que lhes faziees; porque povoarde las com Regno tam despovoado e tam minguado de gente, como he este vosso, he impossivel”. (Ruy de Pina, Crônica de El-Rei Dom Duarte, cap. XIX). Daí valerem-se, para soldados e navegantes, até de criminosos e homiziados, a quem perdoavam as culpas: Paulo da Gama, irmão de Vasco da Gama, assim foi(1). El-Rei não podia remir pecados, como o Pontífice fizera aos Cruzados, mas agraciava aos que embarcassem. Se havia necessidade de gente e mais gente para as armadas, as fortificações, as feitorias... E os que iam, atraídos pela ambição ou pela aventura, deixavam claros sensíveis ao trabalho de mantença da comunidade.
Os escravos foram, pois, bem-vindos. Desde o tempo de Dom Henrique que fora achada a justificativa: ficava-se com o trabalho servil deles, mas salvava-se-lhes a alma(2). E, depois, civilizava-se o bárbaro, como, outrora, o alarve. Mas a Espanha também precisava deles e Portugal fornecia-lhos, negócio imediatamente mais rendoso, embora os campos, insupridos, ficassem sem braços. Na Lisboa de 1552 um décimo da população, de cem mil almas, era de escravos: a impressão de Clenardo exagerou, em 35: parecia que eram mais numerosos que os forros. Esse comércio de escravos, que às vezes apenas transitavam pelo reino, foi anterior e geral, e veio do Oriente a Inglaterra: os ingleses chegaram a vender compatriotas... Portugal não inventou a escravidão e foi humano com ela, obrigado a sofrê-la.
Inaugurara um sistema original de colonização que nem os povos antigos, nem os contemporâneos, ou os sucessores, imitaram: o povoamento. Fenícios e Romanos tiveram núcleos coloniais insulados, nas populações autóctonas; Ingleses e Holandeses têm colônias fechadas, e limitadas, nos países dominados: as gentes aborígenes trabalham, enquadradas pelos colonizadores, que as exploram, e vivem, entretanto, à parte. A Espanha mesma não se parece: foi antes conquistadora, e, às vezes, exterminadora: o México, ainda hoje, tem apenas um décimo de hispano-americanos, para noventa por cento de índios e mestiços. Varnhagen que, à germânica, é pela exterminação dos outros bárbaros, diz que ao norte os nossos selvagens não desapareceram, porque foram assimilados. Portugal colonizou, povoando. Para o grande mundo que descobriu, como bastar? Povoar, explorar o solo e a floresta, plantar canaviais na Madeira, dissiminar por toda parte espécies e frutas exóticas, misturando a flora e a fauna, (os Portugueses foram os uniformizadores mais eficazes da terra, promovendo a troca das utilidades), soltar ovelhas nos Açores desocupados, encher de proveitos todo o mundo ainda traficar, pelejar, manter o adquirido, como fazê-lo, sem gente para tanto?
A Índia, finalmente achada, realizava longínquo ideal. Ideal custoso. Gente aguerrida, industriosa, pugnaz e de outra fé. Para chegar lá, um sorvedouro de dinheiro e de homens. As naus, que começaram modestas, chegaram a “hua grande vila”(3), comparou o Padre João de Lucena: “represente cada hum a si mesmo & pese be consigo que cousa he hua nao de India posta a vela com seis centas, oito centas & ás vezes mais de mil pessoas dentro em si, homes, molheres, mininos, livres, escravos, nobres, povo, mercadores, soldados, gente do mar... A viagem, quando muyto boa, nem pede menos de cinco meses: em os quais nam ha necessidade nem trabalho, nem perigo, que se nam corra, & padeça; na desigualdade dos tempos, nas calmarias de Guiné, nas tormentas do Cabo, na corrupçam dos mantimentos na linha, no aperto contino dos gasalhados, nas postemas, nas febres, nas modorras, na perpetua sombra e presença da mesma morte”. (História da Vida do B. Francisco de Xavier, 1600, 1. I, c. XI, p. 41-2). Só o que custava em dinheiro, — uma tal nau andava por 20 mil cruzados ou 4 mil contos nossos! Muitas não agüentavam duas viagens inteiras; dez era vantagem. Estas naus carregavam mercância de 50 mil cruzados ou 10 mil contos atuais. E como se perdiam naus carregadas ou imprestáveis! Figueiredo Falcão (Livro... da fazenda e real patrimônio... de Portugal, Lisboa, 1859, p. 194 e seg.) diz que, de 1497 a 1612, foram do reino às Índias 806 embarcações: volveram 425; arribaram 10, perderam-se 66, tomadas por inimigos 4, queimaram-se 6, ficaram na Índia 285(4). O Estado admitia particulares nas Armadas, que negociavam por conta própria, apenas em Lisboa sob a intervenção da Casa da Índia. Por isso tudo, disse Diogo do Couto: “escassamente podia armar quatro naus para a carreira de Índia” (Décadas, IV, 1. IX, cap. VIII).
O dinheiro era também escasso, como a gente. A monarquia sob os de Aviz era de príncipes endividados, desde Dom João I: quando vieram os descobrimentos para obter os resgates era preciso mercadoria e, para esta, dinheiro. O que se apurava era pouco e ia-se ao estrangeiro para compras indispensáveis. Das coisas necessárias para a Índia, dizia o Soldado Prático, “o principal he levar dinheiro e tres vezes, dinheiro”, (cap. VII, p. 34) e entretanto Afonso de Albuquerque escrevia a Dom Manuel: “he necessario que o trato comercial de cá se comece com cabedal e mercadorias de lá e eu não vejo as mercadorias; as feitorias estão varridas... Vossa Alteza não tem mercadorias” (Alguns documentos, cit. 242). Nem mercância, nem dinheiro: nem troca, nem compra. Isto a Índia, cujo comércio era rendoso e fora a riqueza de Venezianos: que fazer com o Brasil que não produzia nada ou pouco mais de nada?


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