quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O Brasil foi achado, no meio do caminho...


HISTÓRIA DO BRASIL DE AFRANIO PEIXOTO 5

COMÉRCIO
Essa pimenta, rainha das especiarias, não é apenas um tempero, mas um símbolo: são as Navegações, as Índias, Portugal que abandona a Europa atrás dela(9), e encontra o mundo em caminho... É o que diz o Soldado Prático Português, de um competente contemporâneo, Diogo do Couto: “o descobrimento da Índia todo foi fundado sobre a pimenta” (Cap. XXIII, p. 97), “a cousa da Índia em que mais se põe os olhos” (Cap. XVIII, p. 77). Por isso o pio Gaspar Corrêa diz dela, com propriedade, “lume dos olhos de Portugal” (Lendas da Índia, t. II, L. II, Cap. I, p. 7) e o que é mais, atribui o pensamento a el-Rei e a Afonso de Albuquerque. Todo o reino, do rei ao menor súdito, sonha com a pimenta ou a riqueza. Único ou “todo” será exagero: negá-lo, seria esconder a evidência.

A “Casa da Guiné” fora em Lagos; a “Casa da Guiné e da Mina” já era em Lisboa; a “Casa da Índia” vai suceder às precursoras, e é principalmente a pimenta sucedendo aos escravos, ao ouro, às peles, à malagueta, à pimenta africana. A Casa da Índia não era apenas um entreposto, um armazém, era um ministério, vários ministérios. A princípio nobres e comerciantes e a tripulação dos navios eram sócios, depois o Estado, na regra, chamou tudo a si. Os feitores ou feitorias no Oriente compravam a especiaria, com dinheiro e mercadoria que iam do reino, armazenavam-na e, nas armadas, despachavam a mercância, em fardos do peso de quatro quintais, além das “quintaladas” da tripulação. Em Lisboa descarregava na Casa da Índia, armazém, alfândega e bolsa que negociava por conta própria e dos sócios da empresa, o Estado ou el-Rei, os mercadores, os donos das quintaladas. Vendia pelo preço que fixava, fixando a quantidade, para não desvalorizar o produto. As praças de Flandres e Holanda, Alemanha ou Itália tinham seus agentes, de grandes firmas, Fuggers, Welser, Hoschstetter, Affaitati, Gualterotti, Frescobaldi... que possuíam o privilégio da distribuição. À Casa da Índia convergia tudo; dela é que tudo saía. O movimento por isso era tal que, diz Damião de Góes, houve ocasiões em que as partes tiveram de volver nos dias seguintes, por não haver possibilidade de contar dinheiro a pagar: fato inaudito — não receber, por falta de tempo... O dinheiro, intermediário universal, foi português: se a Guiné daria o nome dos “guinéus” pelo seu ouro, o cruzado português foi, como a libra ou o dólar de hoje em dia, moeda comum. A bolsa de Desdêmona, no Othelo de Shakespeare, estava cheia de cruzados: my purse full of cruzadoes (Othelo, III, 4).
O rei era o primeiro negociante(10). Os fidalgos imitam o soberano. Os da Casa de Bragança foram dos mais diligentes e ambiciosos. “A Corte era verdadeiramente uma grande casa de negócio”(11). Não havia desdouro nisso, bem pelo contrário. Não foi só pela honra, que o comando das armadas e das naus era dado a homens nobres, que desconheciam a navegação. Quando um rei quer pôr cobro a isso, atendendo aos desastres que esses imperitos trazem à marinha, os fidalgos protestam e dá-lhes razão o Conselho Ultramarino(12).
E não comandam apenas armadas e naus: são armadores de navios de comércio e transportes. Na armada que descobre o Brasil, comandada pelo fidalgo Pedro Álvares Cabral, “marinheiro de primeira viagem”, dois dos treze navios são de nobres comerciantes, um do Conde de Porto Alegre, aio de el-Rei, o outro de Dom Álvaro, filho do segundo duque de Bragança, sócio do mercador Bartolomeu Marchioni(13). Na armada de Tristão da Cunha, uma das naus era propriedade do Capitão-mor(14). Nas contas da Casa da Índia figura a nobreza e não se exclui nem o ilustríssimo Afonso de Albuquerque que, só na frota de 1509, tem mercadoria de mais de um milhão de reais. Um comandante de armada, Dom Luiz de Almeida, compra o posto ao Conde da Torre por cinco mil cruzados, e a Lopo Soares, nomeado Governador da Índia, propõe Dom Manuel desistir do posto por vinte mil cruzados, ou quatro mil contos de hoje, que o ambicioso recusou: não seria só pela honra.
O paço do rei, da família real, da corte, era junto à casa de negócio: “como qualquer morador da escola antiga, Dom Manuel estabeleceu a residência no local do seu comércio”(15). Onde hoje, no Terreiro do Paço, em Lisboa, à direita, olhando o rio, estão vários ministérios, estavam os Paços da Ribeira e seguia-se-lhes a Casa da Índia.
A tanto chega “o gosto da cobiça”, verberada pelo Épico (Lusíadas, X, 145), como antes Garcia de Rezende, na Miscelânea, fizera a esse “muito negociar”, que, em 1538, quando Dom João III pensa em mandar, à Índia, uma armada de quarenta naus para se opor à dos Turcos, em preparativos para expelirem os Portugueses de seus domínios orientais, muitos fidalgos que usufruiam comendas se furtaram e aos filhos. “Alegavam que o descobrimento se fizera para fins de trato e comércio e não, como as conquistas de África, de guerrear os infiéis”(16). À insistência do soberano apelam para a Mesa da Consciência que lhes deu razão(17). Aliás a política dos homens e dos Estados sempre foi feita de realidades: a interpretação, à posteriori, é que é tendenciosa, falsificando, com as idéias, os fatos. Na época ninguém cuidou em dissimular isto, de que não há vergonha. Dom Manuel, dando conta aos reis de Espanha da viagem do Gama, diz: “da dita especearya e pedrarya nam trouxeram logo tanta soma, como poderam, por nam levarem pera ello aquella mercadorya, nem tanta, como convynha”. (Alguns documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 1892, p. 96). As expedições seguintes levarão mais dinheiro e trarão mercadoria que farte. Vasco da Gama e Pedro Álvares levavam intuitos pacíficos e muita recomendação para isso(18). Foram interesses opostos, de Venezianos, de traficantes orientais na frente deles, que deram ocasião às insídias, represálias, desatinos, de parte a parte, que se descrevem nos Lusíadas e nas Crônicas. Isto é que dá lugar a que os Portugueses, com os Dom Francisco de Almeida, Duarte Pacheco Pereira, principalmente Afonso de Albuquerque... fundem, sobre a violência e a força militar, o Império português do Oriente, consoante o que disse o Épico: “Quem não quer comércio busca a guerra”. (Lus., VIII, XCII). Entenda-se, não o querem com os Portugueses, porque o têm tratado com os Venezianos: ainda hoje é a competição do interesse que decide, por fim, a guerreira; o imperialismo militar é o nome “patriótico” da irredutível economia... A mercadoria indiana — canela, pimenta, cravo, gengibre, noz moscada, sândalo, benjoim, cânfora, perfumes, porcelanas, pedrarias, sedas — ia a Meca, ao Cairo e daí ao Mediterrâneo. Foi isto que os Portugueses impediram, pelo prestígio da força, baldados os meios pacíficos.
A fé e a ciência(19) andaram e serviram ao propósito das Navegações, mas o fito delas foi a Índia. Dom Manuel, rematando cronistas e historiadores, resume: “entençom e desejo... de se aver de descobrir e achar a Ymdya” (Alguns documentos. .. da Torre do Tombo, p. 127-8). Por quê? Por suprir o Mediterrâneo, então vedado, ou difícil, e, por isso, caríssimo. Para quê? Para obter as especiarias, mais vantajosamente, por outro caminho(20). O privilégio muda de posse: eram Venezianos, são agora Portugueses; era Veneza o empório do Oriente, passa a ser Lisboa... É o que diz esse mesmo Dom Manuel, intérprete fidedigno de Portugal, no título pomposo que vem a tomar: “Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”(21). E ninguém toma títulos senão os que enobrecem: “titulos muyto famosos”, disse Castanheda (Dp. cit. 1. I, Cap. XXIX, p. 71); “tam honroso quãto ho he ha mesma conquista”, disse Damião de Góes (Op. cit., p. I, fl. 45).
As conseqüências morais ou ideais da ação de Portugal no Oriente não são por isso menos consideráveis: atacando os Infiéis no Oriente chama para as Índias as possibilidades muçulmanas, que já não podem investir contra a Europa e mesmo se enfraquecem no Mediterrâneo. Já em 1571, com a batalha de Lepanto, eles entram, esses Turcos, em decadência, nesse Mediterrâneo(22). Apesar do monopólio, as navegações e o comércio do Oriente não interessaram só a Portugal, senão a toda a Europa(23), que mais se enriqueceu do que nós, ao menos a Flandres, a Inglaterra, a Holanda, a quem dávamos ouro e nos forneciam as manufaturas a traficar com a pimenta.
Portugal pelas especiarias foi à Índia, e, com as navegações, conheceu mundos novos, estimulando e dando benefícios ao mundo antigo. O Brasil foi achado, no meio do caminho...


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